O desenvolvimento humano deve tornar-se relacional

Facundo García Valverde argumenta que fatores sociais e ambientais tornam os conjuntos de capacidades das pessoas desiguais. Instituições, políticas, leis e normas sociais, em particular, têm uma tremenda influência na formação das capacidades das pessoas. O desenvolvimento humano, portanto, precisa incorporar uma consideração específica das relações igualitárias, pois há uma forte ligação entre desigualdade e falta de liberdades valiosas.

O desenvolvimento humano deve tornar-se relacional

Dois indivíduos têm ingressos para um show de rock. Um mora em um bairro pobre e o outro em um bairro de classe média. Enquanto o último chega cedo ao show, o primeiro chega durante a quarta música porque a polícia o parou e o interrogou por nenhum outro motivo além de sua localização e cor de pele.

Duas mulheres passam a mesma quantidade de tempo em seu local de trabalho, mas uma (a professora) sente que seus talentos são reconhecidos e estimados por sua comunidade, enquanto a outra (a faxineira) percebe que seus talentos são inferiores e indignos de reconhecimento.

Dois acionistas discordam fortemente durante uma reunião sobre alguma decisão da empresa. O conselho toma a atitude agressiva do homem como sinal de determinação, mas a atitude agressiva da mulher como sinal de ser incontrolável e movida por paixões; o primeiro recebe uma promoção e o segundo uma reputação.

O que torna esses três exemplos problemáticos do ponto de vista normativo? O problema não é a violação de nenhum direito, nem a quantidade de interferências diretas em suas escolhas, nem a desigualdade distributiva entre eles. Cada um pode fazer o que quiser, ninguém é tão pobre que tenha que aceitar ofertas coercitivas, e parece não haver nenhuma lei ou instituição formal que impeça totalmente a satisfação, por exemplo, do direito à livre circulação. Então, há algum problema normativo nesses exemplos?

A comunidade de desenvolvimento humano está comprometida com uma resposta afirmativa. Os três exemplos ilustram como capacidades valiosas são diminuídas por restrições estruturais que não são de responsabilidade exclusiva de qualquer indivíduo em particular. Não é o membro individual da comunidade escolar nem o conselho que restringem de propósito as liberdades reais da faxineira ou da acionista. São fatores sociais e ambientais que estão tornando os conjuntos de capacidades desiguais: perfis raciais e estereótipos influenciam a conversão da mesma quantidade de recursos em diferentes níveis de acesso e liberdade de movimento e afetam nossa imaginação; sinais hierárquicos de status e reconhecimento ligados a cargos e empregos afetam as capacidades de filiação, expressando a mensagem simbólica de que alguns trabalhadores são mais dignos do que outros; as práticas sexistas no trabalho prejudicam a capacidade das mulheres de demonstrar seu valor epistêmico em igualdade de condições com os homens, produzindo uma comunidade de conhecimento tendenciosa.

Embora o avanço inicial do desenvolvimento humano tenha sido sua significativa reconceitualização da pobreza como uma falta individual de capacidades fundamentais, ele incorporou, até certo ponto, a influência de restrições estruturais nos 'seres e ações' disponíveis para um indivíduo. Por exemplo, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2004 concentrou-se em como as identidades raciais e culturais moldam as liberdades reais dos indivíduos e como pertencer a certas minorias era um indicador confiável de ser pobre em termos de capacidade. O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019 expandiu consideravelmente sua atenção para além das capacidades básicas e concentrou-se em como uma miríade de desigualdades (como gênero, poder, saúde, educação e etnia) não apenas se consolidava, mas também se diversificava por meio do acúmulo de desvantagens ao longo da vida.

Na mesma direção, mas no campo conceitual, Ingrid Robeyns fornecido uma tremenda defesa da absoluta indispensabilidade de incorporar restrições estruturais em qualquer projeto ou avaliação que afirme respeitar os princípios e módulos centrais de uma teoria capacitadora. Segundo ela, instituições, políticas, leis e normas sociais têm uma tremenda influência tanto nos fatores de conversão das pessoas quanto na formação das capacidades das pessoas, até mesmo capacidades como amizade ou auto-respeito que não dependem de recursos materiais.

Apesar deste passo inicial, a desigualdade no desenvolvimento humano é mais profunda do que é identificável ao nível das instituições formais, leis e políticas. Como nossos três exemplos iniciais pretendem mostrar, ela funciona fundamentalmente no nível das normas sociais e informais que constituem e estruturam os valores, atitudes e crenças com os quais indivíduos e grupos se relacionam. Em outras palavras, as relações entre os indivíduos são mediadas por um conjunto de crenças, preconceitos, atitudes e expectativas que não poderiam ser totalmente cobertas por normas formais e legais.

Por exemplo, não é apenas conceitualmente possível, mas também sociologicamente esperado, encontrar uma sociedade que tenha promulgado ações afirmativas ou políticas de compensação e que ainda seja racista, misógina e segregada. Isso porque políticas e leis, em muitos casos, deixam intocadas as normas e práticas sociais que justificam hierarquias de valor, avaliações diferenciadas, subordinação e exclusão de membros menos favorecidos das comunidades.

Isso sugere que o desenvolvimento humano precisa incorporar uma descrição específica das relações igualitárias – se for o caso (e eu acho que é) que há uma forte ligação entre desigualdade e falta de liberdades valiosas. Como mostrarei a seguir, o 'igualitarismo relacional' oferece tal explicação que é atraente do ponto de vista do desenvolvimento humano.

O igualitarismo relacional é uma concepção de justiça social que argumenta que o foco principal não é a obtenção de uma distribuição justa ou igualitária entre os indivíduos, mas, em vez disso, a obtenção de uma comunidade cujos membros possam se relacionar uns com os outros em termos igualitários – isto é, sem apelando para divisões de status, categorias hierárquicas ou classificações de valor (veja o trabalho de Elizabeth Anderson, Jonathan Wolff, Carina Fourie e Schemmel, por exemplo). Assim, opõe-se a sistemas de apartheid e castas, segregação e ordens de nobreza porque implicam uma divisão hierárquica pela qual alguns membros são superiores e outros inferiores.

Ao focar nas relações interpessoais e intergrupais, essa concepção igualitária desenvolveu ferramentas conceituais e argumentos para construir uma perspectiva crítica sobre as bases e práticas sociais de uma sociedade desigual. Como a desigualdade não é mais concebida como um problema puramente distributivo, emergem seus aspectos relacionais. Estereótipos, preconceitos implícitos e preconceitos explícitos, sinais de status, bens posicionais e atitudes de desdém e deferência são todos elementos que estruturam essas relações desiguais; como esses elementos estão inseridos em contextos específicos, consolidados nas práticas e reproduzidos por meio de recompensas ou reprimendas, são mais estáveis ​​e, portanto, mais difíceis de mudar.

Ao analisar se esta ou aquela política, ou esta ou aquela transferência de recursos, promove relações igualitárias, devemos olhar tanto para o resultado real quanto para o processo. Por exemplo, um igualitarista relacional tem recursos conceituais para uma forte crítica às rampas para cadeiras de rodas que são projetadas e construídas de forma descuidada, à atenção médica prestada a grupos indígenas que os humilha e infantiliza, aos estigmas ligados à proteção social voltada para os pobres e ao prestígio e status concedidos a certos empregos ou talentos naturais e não a outros. Todos esses casos mostram que tanto no nível da deliberação quanto do projeto, elementos de relações desiguais (a emoção da piedade, uma atitude paternalista, um espaço público privilegiado fisicamente apto e um desejo fetichista de status) são identificáveis ​​e devem ser criticados.

A proposta deste texto é que o desenvolvimento humano se torne relacional ou, pelo menos, incorpore uma preocupação explícita de como as normas e relações sociais impactam em liberdades valiosas. A razão fundamental é que a estigmatização, a subordinação, a dominação e as hierarquias influenciam de maneira específica essas liberdades. Essa influência pode ser registrada em dois níveis: o individual e o comunal. Quanto ao primeiro, quando as características das relações desiguais são difundidas em uma sociedade, restringem a reflexão crítica sobre o que um indivíduo valoriza ao favorecer uma concepção dominante do que é valioso. Quanto ao segundo, esses mesmos elementos afetam os níveis de empatia e comprometimento entre membros de diferentes grupos de status e dificultam as condições sociais necessárias para ampliar as liberdades individuais reais.

A incorporação desse aspecto relacional ao conceito de desenvolvimento humano abre uma nova agenda, que exige um trabalho interdisciplinar que está além do escopo limitado deste texto. Sem qualquer intenção de exaustividade, três dimensões merecem atenção.

Em primeiro lugar, no que se refere à dimensão individual, o reconhecimento e a estima obtidos por um indivíduo devem ser analisados ​​relacionalmente: como é ser xingado, sofrer bullying no ensino médio ou não ter certas qualidades que são estimadas pela sua comunidade (como beleza, dinheiro, roupas ) impacto na autoconfiança, no senso de reconhecimento e na busca de seres e fazeres valiosos?

Em segundo lugar, no que diz respeito à dimensão do trabalho, o prestígio e o status atribuídos a cargos bem remunerados provocam uma questão relacional: como uma cultura de competição em um ambiente de trabalho impacta as liberdades usufruídas por 'vencedores' e 'perdedores' e nas relações entre esses dois grupos?

Em terceiro lugar, em relação à dimensão política: como os estereótipos étnicos ou de gênero sobrecarregam as minorias e os indivíduos oprimidos que participam política ou ativamente da vida de sua comunidade?

O conceito de desenvolvimento humano é uma grande invenção do mundo acadêmico que transcendeu suas próprias fronteiras e obteve algum reconhecimento político em documentos e instituições internacionais e nacionais. Uma rearticulação do processo deve visar a cruzar ainda mais fronteiras e tornar-se um discurso público acessível não apenas aos pobres, mas também àqueles cujas liberdades são limitadas pelas desigualdades sociais.


Facundo Garcia Valverde é Professor de Desenvolvimento Humano na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) e pesquisador do Centro de Pesquisas da Argentina (CONICET). Foi bolsista da Fulbright e publicou vários artigos e capítulos de livros em diferentes revistas internacionais (Dianoia, Análisis Filosófico, Revista Latinoamericana de Filosofia e Revista de Ética e Economia entre outros). Suas áreas de pesquisa são os fundamentos normativos da abordagem das capacidades, republicanismo e igualitarismo relacional.

Imagem da capa: por 900hp on Flamber

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